A Ceia de Natal (ou o Anel que caiu
do céu)
Para desespero de Luiz Claudio, outra vez chegara o natal e,
com ele, a infalível ceia na mansão dos pais de Maria Clara, com direito à
distribuição de presentes. À meia-noite, cumprindo um ritual que vinha de gerações,
o “velho” simplesmente bateria
palmas, convocando todos à mesa. Como sempre, com a empáfia dos que têm a
certeza que tudo podem, ele abriria o jantar com um brinde ao sucesso
conquistado naquele ano, elogiando cada um dos genros e, quando chegasse em
Luiz Claudio, repetiria a mesma frase: “a
nosso Luiz Claudio, que ainda há de nos surpreender.” Todos rirão, menos,
por certo, Maria Clara que, de soslaio, o olhará, com indisfarçável desprezo.
Dos quatro genros, Luiz Claudio fora o único que não aceitara trabalhar na
Construtora do “velho”, participar
das “maracutaias” que enriqueceram a
todos. Era engenheiro da Prefeitura e vivia de seu ridículo salário. Maria
Clara fora recíproca paixão instantânea, que esmaeceu com o tempo e as
dificuldades financeiras – “eu me humilho
perante minhas irmãs, com estes vestidos de brechó e jóias de fantasia
baratas.” A duras penas, comprara aquele
minúsculo apartamento, próximo ao aeroporto de Congonhas, barulho
ensurdecedor, avião pousando e decolando. O “velho” lá estivera por uma única vez e não poupou o comentário: - “nossa, Maria Clara, seu apartamento é menor
do que a lavanderia de minha casa.” Luiz Claudio engoliu a humilhação, mas
jamais se submeteria a aceitar qualquer ajuda do “velho”, porque sabia ser alto o preço a pagar. Mas chegara mais uma
noite de natal e ele, com muito esforço, somente conseguira aquela pulseira de
ouro, comprada em intermináveis prestações. Seria o presente de Maria Clara,
que o receberia com indisfarçável sorriso de decepção. Luiz Claudio estava
perdido nestas divagações sombrias, quando enorme estrondo, bem acima de sua
cabeça, quase o jogou da cadeira, onde apoiava os pés, para calçar as meias.
Correu à janela, a tempo de ver pedaços de corpos cortarem o espaço, a sua
frente, qual estrela cadente. O avião, de médio porte, explodira, vomitando
seus passageiros, espaço afora. Luiz Claudio vestiu a primeira calça e a
primeira camisa, que encontrou e, sem esperar pelo elevador, desceu as escadas
em direção à calçada. As primeiras viaturas de policia chegavam ao local,
tentando afastar a multidão, que se formava entre cabeças, braços, pernas,
espalhados, como se fossem brinquedos macabros, em loja de periferia. Um cheiro
nauseabundo de corpos queimados impregnava o ar e Luiz Claudio, instintivamente,
levou a mão ao bolso, onde sempre levava o lenço, levemente umedecido de seu
perfume preferido, “pacco rabane”.
De repente, quase debaixo de seu pé, viu ele um
pedaço de braço, onde, de um dos dedos da mão, restava enfiado um magnífico
anel de brilhantes, absolutamente intacto. Quase mecanicamente, Luiz Claudio
abaixou-se e, tal foi a força empregada para arrancar o anel, que o dedo veio
junto. Rapidamente, sem olhar para o lado, colocou o dedo com o anel no bolso e
voltou para o apartamento. Encontrou Maria Clara, em pranto convulso. Procurou
acalmá-la, que, por certo, não haveria ninguém conhecido no vôo e que era
melhor se apressarem, porque ela sabia como o “velho” se irritava com atrasos. Foi ao banheiro e, usando sabonete,
conseguiu tirar o anel do dedo anônimo, que jogou pela janela, para se juntar
aos outros pedaços de corpos. Limpou, cuidadosamente o anel, inclusive
lustrando-o com flanela, guardou-o em uma minúscula caixa, que encontrou no
armário, tomou banho e se vestiu com esmero. Pegou-se cantando “I left my hart in San Francisco”, o que
surpreendeu Maria Clara: - “nossa, Luiz
Claudio, com tanta desgraça em nossa porta e você cantando?” Ele a olhou,
com a indiferença de tantos anos, mas não deixou de notar que ainda era mulher
bonita, seios firmes e coxas torneadas, malgrado já estar chegando aos 50 e as
dificuldades cotidianas. Felizmente, a garagem dava para a rua atrás do prédio
e puderam sair, sem maiores dificuldades. A casa do “velho” ocupava todo um quarteirão do Jardim Europa e Luiz Claudio
estacionou seu humilde e ancestral “Peugeot”,
atrás do BMW de Maria Eduarda, sua cunhada. Ali, naquele local, começava sua
humilhação: “puxa, Luiz Claudio, você
podia, pelo menos ter mandado lavar esta lata velha! E precisava parar logo
atrás do carro da minha Irma?” Apalpando a caixinha, que trazia no bolso,
ele apenas sorriu e, gentilmente, tomou Maria Clara pelas mãos, conduzindo-a
para dentro do casarão. A chegada de ambos provocou enorme alarido, todos
querendo saber do acidente, àquela hora, amplamente divulgado pela TV. Até o “velho” que sempre o tratara com
desprezo, rendeu-lhe homenagens, como se ele fosse o autor da explosão. Alguns
uísques depois, foi servida a ceia. Chegara o grande momento e o coração de
Luiz Claudio quase saltava pela boca. Antes que o “velho” levantasse a taça para o brinde, que abria o jantar, Luiz
Claudio, para espanto de todos, levantou-se da cadeira e “roubou” a palavra: - “nesta
noite, com perdão de meu estimado sogro, quero fazer um brinde especial a Maria
Clara, esta maravilhosa companheira de uma vida inteira, jóia rara a quem
ofereço jóia menos valiosa.” E retirou a caixinha do bolso, abrindo-a, o
anel de brilhantes a faiscar. Maria Clara contemplou-o, fascinada e o anel
passou de mão em mão, sempre arrancando expressões, entre espanto e admiração.
Fernando, marido de Maria Eduarda e que era “expert” no assunto, deu o laudo definitivo: - “são brilhantes da Antuérpia, os mais raros e mais caros do mundo. Deve
ter custado uma fortuna, não é, Luiz Claudio?” Este apenas sorriu e,
enigmaticamente exclamou: “é apenas um
anel que caiu do céu
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