segunda-feira, 14 de abril de 2014

REFLEXÃO PARA A SEMANA SANTA

“QUEM OS HOMENS DIZEM QUE EU SOU?”

Uma vez, Jesus perguntou aos seus discípulos: “Quem os homens dizem que eu sou?” Conforme o evangelho de Mateus, as respostas foram variadas: “Alguns dizem que é João Batista; outros, Elias; ou um dos profetas.” Mesmo entre os que o conheciam em primeira mão, havia pouco consenso a respeito da identidade do enigmático pregador da Galiléia. Passados mais de dois mil anos, a pergunta de Jesus ainda carece de uma resposta precisa. A verdade é que a polêmica acerca da vinda de Jesus à Terra continua, com vigorosa ferocidade e muitas dissensões. Hoje, uma das muitas questões a respeito da vida terrena de Jesus se focaliza na profundidade com que se envolveu na causa de sua nação contra Roma: ele foi um revolucionário, ou mesmo um fanático? Certamente, tanto Judas Escariotes, quanto Simão, o Zelote, vieram desse contexto. Quando atenderam ao chamado de Jesus – “venha e siga-me” – será que eles abandonaram seu tipo de vida? Não se pode discordar de que Jesus, desde o início de seu ministério, começou a preparar o povo para a ocorrência de grandes acontecimentos. Em vez de ficar, como outros rabis, ministrando apenas à comunidade local, ele rapidamente se tornou uma figura que atraía multidões, primeiramente na Galiléia e depois em toda nação, quando foi a Jerusalém nos dias finais de sua carreira. A partir disso, é razoável deduzir que Jesus viu o seu papel como o de alguém com uma missão, expandido a toda nação judaica. Por que mais ele viajaria constantemente, exortando o povo para que soubesse que “o tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo...?” Em sua decisão deliberada de formar uma pequena comunidade – seus discípulos imediatos – ele estava seguindo um padrão há muito estabelecido por profetas como Elias e Eliseu. Esses foram figuras políticas. Será que Jesus se configuraria no mesmo molde? Será por isso que, parábola após parábola, ele retoma os mesmos pontos que, justificadamente, podem ser chamados de “fervor apocalíptico”: que a chegada do Reino de Deus será súbita e que somente os que estiverem preparados para recebê-lo não perecerão? Essa não é a pregação de um homem cuja mensagem é urgente? Na verdade, tudo que se pode dizer, sem polêmicas, é que, por um curto período da história judaica, Jesus foi a única esperança para a maioria do povo judeu. Quantos deles foram atraídos pela ousadia das reivindicações de Jesus, pelo absoluto carisma de sua personalidade, pelo poder de seus milagres e pela perspectiva de que ele era alguém que poderia conduzi-los para fora do jugo da ocupação romana? Quantos não teriam se desapontado quando ele não lançou uma rebelião violenta e se voltaram contra ele por essa razão? A verdade é que a questão de como Jesus via a si mesmo é uma das polêmicas mais acirradas do Novo Testamento. A dificuldade em desvendar tal questão reside no fato de que Jesus não deixou registros de próprio punho. Os que mais tarde registraram suas palavras pareciam estar preocupados em mostrá-lo como um reformador religioso, rejeitado pela sua própria raça. Não podemos esquecer que Jesus nasceu, cresceu e morreu como judeu. É uma das muitas ironias que Jesus, na cruz – que é o mais potente símbolo da fé cristã – use vestes para cobrir seus quadris. Tal ocultação não pode ser entendida como decência. Provavelmente, as vestes sobre os seus quadris escondam a ausência da essencial marca do judeu, a marca na carne feita pela circuncisão. Todavia, não há nada escrito que apresente Jesus como qualquer outra coisa que não seja um judeu normal: um homem completamente sintonizado com as aspirações religiosas e nacionalistas do seu povo, vivendo em um tempo de fanatismo religioso. Muitos os há que afirmam não ter Jesus ensinado nada de novo e que suas idéias foram tiradas da literatura e tradições de seu povo. Pode até ser que Jesus não tenha dito qualquer coisa nova. Apenas disse melhor. Mas, Jesus era um revolucionário da forma como, vulgarmente, entendemos essa palavra? A questão pode ser melhor respondida ao dizer que ele foi acusado, processado e condenado como se fora um revolucionário. O acidente de ter crescido na Galiléia, na época em que a província era vista por Roma como o principal reduto da resistência judaica, foi um potente fator de contribuição. Jesus chegou ao conhecimento das autoridades por sua pregação radical, como político suspeito e, quando começou a pregar mais abertamente, também como religioso suspeito.

No início da década de 1980, algumas rádios e jornais de incontestável respeitabilidade como a “BBC” e o “The Sunday Times” anunciaram que tinham sido encontrados, em um túmulo em Jerusalém, ossários contendo os nomes José, Maria e Jesus. Por certo, se as urnas funerárias, conhecidas como ossários, contivessem os restos de Cristo e sua família, elas lançariam dúvidas sobre a essência da fé cristã: a ressurreição. Por certo, a fé cristã estaria seriamente abalada e a igreja católica apostólica romana e as seitas dela derivadas sofreriam fundo e talvez mortal golpe. Mais tarde, todavia, importantes arqueólogos identificaram, naquelas mesmas ruínas, mais de mil ossários com os nomes José, Maria e Jesus, nomes que eram comuns na antiguidade e, ao longo dos anos, foram encontrados mais dez ossários, contendo o nome Jesus, em suas variações hebraicas e gregas, sendo certo que havia maior abundancia de variações de Miriam, nome a partir do qual Maria é derivada. A partir dessa incontestável evidência histórica, a fé cristã restaurou-se, por inteiro.

Todavia, voltemos à questão central: “Quem é Jesus?” E mais: por que ele, em nenhum registro dos evangelhos, diz claramente quem ele é? Quando João Batista perguntou a Jesus, por meio de seus discípulos, “És tu aquele que haveria de vir ou devemos esperar algum outro?” Jesus, em resposta, enviou uma mensagem: “Voltem e anunciem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: os cegos vêem, os mancos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem...” (Mateus, 11:3-5). Mesmo em resposta à pergunta de Pedro, “Tu és o Cristo?” Jesus “os advertiu que não falassem a ninguém a seu respeito” (Marcos, 8:30). Muitos “cristologistas” tem se manifestado no sentido de que a busca pela verdadeira identidade de Jesus não deve ficar limitada aos evangelhos, cuja autenticidade chegam a colocar em dúvida, inclusive sustentando que os mesmos foram escritos por anônimos, muito tempo depois da morte de Jesus. Essa tese, todavia, restou definitivamente superada quando, em 1995, famoso papirologista alemão, Carter Dieter Thiede, identificou, em papiros da metade do 1º século D. C., trechos dos evangelhos de Marcos e Mateus, o que permite concluir pela possibilidade concreta de estarmos diante de relatos de testemunhas oculares. E mais, fragmento de papiro, existente na Universidade de Paris, identificado como sendo dos anos 60 D. C. é parte do evangelho de Lucas. Tais informações tornam inquestionável, não só a contemporaneidade dos evangelhos com Jesus, mas a veracidade de seus conteúdos, por mais que tal autenticidade irrite os eruditos não cristãos. A esse respeito, o mesmo Thiede lembra-nos de que: “se os evangelhos são mais anteriores do que pensamos, então a brecha entre o Jesus da história e o Cristo da fé não seja tão grande quanto os eruditos disseram e os cristãos temeram. Para os não crentes, esses achados não vão forçar ninguém a se tornar cristão. Mas o relato de testemunhas oculares da geração de Jesus torna os evangelhos dignos de crédito, inclusive como relato histórico.” Alguns analistas dessa superaquecida arena de debates bíblicos questionam o porque de os evangelhos oferecerem parcas informações sobre a vida terrena de Jesus, seu cotidiano, seu relacionamento com as pessoas que encontrou. A explicação se nos afigura óbvia: Cristo é apresentado nos evangelhos como a essência da divindade e, como tal, mesmo tendo vivido como homem, os detalhes de seu cotidiano não podiam – ou não deviam – ser revelados. Até porque, o que alteraria aquela “essência divina” informar onde e como fazia, por exemplo, suas necessidades fisiológicas? Importa saber que, em tudo, era igual a todos os homens, menos no pecado.

Outra questão, que nos parece relevante, diz respeito à relação de Jesus com o povo judeu. Muito mal foi feito a esse povo, em nome de Jesus. Hitler mesmo, no princípio, justificou sua perseguição aos judeus sob o falacioso argumento de que foram eles responsáveis pela morte de Jesus. Todavia, hoje se aceita, como definitivamente verdadeiro, que as ligações com o judaísmo sempre estiveram presentes em todas as proclamações a respeito da vinda de Cristo. Como leciona Gordon Thomas que, por quase uma década, debruçou sobre o tema, “renovam-se a história e princípios do judaísmo do Novo Testamento e o Cristianismo parecerá não ter sentido.” Apesar desse preconceito ter sido reduzido, principalmente a partir da ação do Papa João XXIII, muitos judeus continuaram convencidos de que o anti-semitismo que perturbou sua vida, por séculos, se prolongará até que o tema central dos evangelhos seja removido: que ele foi preso por ordem do sumo sacerdote do templo; que, antes, ele foi julgado por um Sinédrio de outros sacerdotes; que ele foi condenado à crucificação, punição imposta aos judeus, sempre na linha de frente de todas as narrativas dos evangelhos. Todavia é hoje, amplamente aceito que a responsabilidade pela morte de Jesus deve ser atribuída ao sistema imperial romano e, especificamente, ao Procurador da Judéia, o ofício de sumo sacerdote e uma coleta ininterrupta de tributos para os cofres de Roma, garantindo, assim a estabilidade política de Pilatos. Tudo mais na história de Jesus e sua morte decorreriam dessa aliança.

É particularmente importante, na compreensão do homem Jesus e sua missão, enxergá-lo no contexto de seu tempo; tentar entender como viviam os que o cercavam, mais de perto: Maria e Marta, Lázaro, irmão delas; os sacerdotes do templo; Pôncio Pilatos e sua família; a aristocracia judaica e até mesmo os romanos, em sua fortaleza. Esta compreensão demanda conhecimento de seus estilos de vida, seus hábitos, seu sistema jurídico; demanda a recriação com toda fidelidade, do mundo em que a palavra foi primeiramente empregada – e compreender seus efeitos nos que a ouviram pela primeira vez. Também é importante refletir sobre moderna visão do próprio Vaticano, segundo a qual a fé não se baseia, ou se exaure, nos detalhes da história. Deus, ao inspirar pessoas, permitiu que escrevessem dentro da moldura de seu próprio tempo, mente e cultura. O que eles criaram não foi simplesmente verdades eternas, imutáveis. Aceitar isso seria reduzir as escrituras a pouco mais do que princípios teológicos, virtualmente esvaziados da verdade singular – no caso do Novo Testamento, pode ser chamado de “verdade do evangelho” – misturando parábolas, casos, atos, declarações formais, leis, milagres, pessoas e hinos. A riqueza disso é parte história, parte hagiografia, parte biografia e, sobretudo, a mensagem de Deus que, embora baseada em fatos, não depende de cada detalhe desses fatos.


As controvérsias sobre “fatos” da vida de Jesus (se ele nasceu ou não em Belém, se ele tinha ou não irmãos, o ano exato em que ele nasceu), a nosso juízo, pelo menos para a resposta à questão de nosso tema, é de pouca, para não dizer, nenhuma importância. Quando Jesus perguntou a seus discípulos: “Quem os homens dizem que eu sou?”, seguramente não desejava que se desenvolvesse um debate sobre sua aparência ou sobre fatos relacionados a sua história física – onde e quando nasceu; onde e como morava; o que e quando comia, etc. Quando Pedro responde “Tu és o Messias.” ele sintetiza a essência da única verdade: era ele o Deus-homem, real, como todos os homens, mas perfeito, como nenhum outro homem.

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