quinta-feira, 16 de maio de 2013


É sempre oportuno lembrar-nos daqueles que, ao longo de nossas vidas, deixaram em nós, a marca de suas influências. É a maneira de mantê-los vivos, quase que conversando conosco, oferecendo-nos o doce gosto de suas personalidades marcantes. Porisso, falar sobre Carlos Lacerda, no mês em que se comemora o 36º ano de seu falecimento e minha fugaz convivência com ele é a oportunidade para reviver momentos importantes e inesquecíveis em minha vida.

Carlos Lacerda foi, e talvez continue sendo, a maior influência ideológica que minha juventude absorveu e que iria marcar, para sempre, minhas convicções políticas. A memória mais remota remete-me lá pelos 12 anos de idade, ouvidos colados à Rádio Mairinque Veiga, Lacerda a desancar Juscelino e sua maior megalomania, chamada Brasília. O tempo provou que Lacerda estava certo: Brasília, nem de longe, cumpriu seu objetivo, que seria a interiorização do progresso. O jornalista de “A Folha”, Fernando Rodrigues, em magnífico artigo, quando do último aniversário daquela cidade, demonstrou o retumbante fracasso social e econômico em que ela se tornou, por nada ter acrescentado à região. Além do mais, Brasília “isolou” o poder das injunções populares, possibilitando que grandes falcatruas fossem e continuem a serem perpetradas. Lacerda tinha essa capacidade de premonição, apanágio apenas dos gênios. Entretanto, só vim a conhecer Lacerda, pessoalmente, em 1963. Ele acabara de ser indicado candidato à Presidência da República, pela UDN, no pleito, que se realizaria em 1965 e já percorria o País em pré-campanha. Foi ele fazer uma palestra na Faculdade de Direito da PUC-SP, onde eu estudava. Lá, tínhamos um partido – o “PIU – Partido Idealista Universitário” – que nós, seus filiados, tínhamos a risível pretensão de ser a “UDN acadêmica”. Batíamos de frente com a “JUC – Juventude Universitária Católica”, cujo mentor era o Padre Enzo, Diretor da Faculdade de Filosofia da mesma Universidade, que nós, “udenistas”, execrávamos, por considera-lo “comunista de batina”. Apesar de todas as manifestações contrárias, Lacerda foi fazer sua palestra e eu, que era o orador do partido, fui escalado para saudá-lo. Fiquei uma semana escrevendo e ensaiando meu discurso e, na hora, suava e tremia, tal o nervosismo. Acabada a palestra, Lacerda, sempre atencioso e gentil, abraçou-me e me convidou para conhecer algumas obras importantes, que estava realizando na então Guanabara, da qual era Governador. A falta d’água era problema crônico naquela cidade. Havia, até, uma música de carnaval dos anos 50, cujo refrão dizia: “Rio de Janeiro, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta luz...” Pois Lacerda, mesmo com o boicote financeiro do Poder Central (primeiro Jango depois o próprio Castello Branco) estava construindo a “Adutora do Guandu”, que iria resolver, definitivamente, o problema de falta d’água na cidade. Outra obra importante era o “Túnel Rebouças”, que ligaria a zona norte à zona sul, em poucos minutos. Até então, o único elo entre as duas regiões era a Avenida Brasil, o que, além de alongar a distância, provocava, já naquela época, enormes engarrafamentos. A “esquerda festiva” era contra o túnel porque – alegavam – infestaria de “suburbanos” as praias do Leblon e de Ipanema. Era uma época incrivelmente contraditória: a esquerda, que suspirava e revirava os olhos por Cuba, era tremendamente elitista e homens, realizadores de obras populares, como Lacerda, eram tidos como reacionários. Mas o certo é que, um dia, recebi um telefonema em casa, da secretária do Lacerda, cujo nome não me recordo, formalizando o convite para a tal visita. No dia e hora marcados, apresentei-me no Palácio Guanabara e com mais outras mais pessoas percorremos inúmeras obras, inclusive a “Vila Kennedy” para onde estavam sendo transferidas as pessoas, retiradas da “Favela do Pasmado”. Ao invés de casas improvisadas com tapume, Lacerda mandara construir moradias descentes, com água, luz e esgoto, o que era um luxo, naquela época. A “Rodoviária Novo Rio” foi considerada pela oposição rancorosa, obra faraônica, pelo seu tamanho. Menos de 20 anos após sua inauguração, já se mostrava pequena. Eu e os outros visitantes, ficamos hospedados no “Hotel Novo Mundo”, ali na Praia do Flamengo, onde estava sendo construída a maior obra urbanística do mundo, o aterro do mesmo nome e que é um dos mais belos cartões postais do Rio. À noite, depois da visita, Lacerda nos ofereceu um jantar, quando nos apresentou uma extensa relação de suas obras, o que nos deixou a todos simplesmente maravilhados. Incrível a capacidade de trabalho daquele homem que ainda encontrava tempo, madrugada adentro, para dar “incertas” em hospitais e delegacias, a fim de constatar se tudo estava funcionando a contento. De volta a São Paulo, e como sempre tive mania de escrever, mandei-lhe algumas cartas, que ele jamais deixou sem resposta, chamando-me “meu jovem causídico”. Mesmo sabendo, é claro, que as respostas vinham de algum “ghost writer”, era sempre uma deferência, que me encantava. Voltei a me encontrar com Lacerda, no dia 31 de março de 1964, que, se não me falhe a memória, coincidiu ser um domingo. Naquela época, eu, habitualmente, passava o fim de semana no Rio. Ia de carona com meu cunhado ou algum amigo dele, todos pilotos da Varig, que tinha acabado de comprar a “Real Aerovias”. Saía de São Paulo em um dos voos noturnos da 6ª feira e voltava do Rio à noite do domingo. Ficava hospedado na casa de minha irmã, que morava na Rua Paissandu, bem perto do Palácio Guanabara. Meu roteiro era, de dia, praia e, à noite, o “Beco das Garrafas”, então o templo da bossa nova. Passava todo o tempo saboreando uma única cerveja – o dinheiro pouco não suportava mais do que isso – enquanto via e ouvia Vinicius, Tom, Claudete Soares, Lucio Alves e outros bambas da MPB. Também frequentava o “Cine Paissandu”, templo do cinema novo, onde se fazia pose de intelectual e se assistia a filmes chatíssimos. Pois no dia 31 de março, estoura a Revolução e, pelo rádio, fico sabendo que o Almirante Aragão dirige-se ao Palácio Guanabara, para prender Lacerda. Eu, que estava a menos de 500 metros de lá, saí correndo em direção ao Palácio, para me juntar a tantos outros que lá estavam para defender nosso líder. Defender, eu não sabia como, já que nunca atirara nem mesmo com espingarda de chumbinho. Mas sabia que a história estava acontecendo e queria participar dela. O Palácio estava protegido por caminhões de lixo que eram, por assim dizer, a divisão “panzer” do Lacerda. Já dentro do Palácio, após dar meu nome a um soldado, creio que da Aeronáutica, subi a escadaria central, que desembocava em um enorme salão, àquela hora apinhado de gente. A um canto, falando ao telefone e, com a outra mão, empunhando uma metralhadora, estava Lacerda. Encerrada a ligação, dirigi-me para cumprimenta-lo e ele, para meu espanto, abraçou-me calorosamente. Lembro-me, vagamente, de que fui encaminhado ao Coronel Gustavo Borges, então Secretário de Segurança, que estava distribuindo as armas para defesa do Palácio. Dele recebi um fuzil que segurei com extremo cuidado, já que, desajeitado como sou, tinha medo que disparasse. Felizmente o ataque não veio e Lacerda, em inflamado discurso, saudou a Revolução e convocou uma reunião de seu Secretariado. Voltei para São Paulo e, à distância, fui assistindo ao esgarçamento das relações de Lacerda com o Governo Castello Branco. Lacerda tinha um grande projeto, o de ascender à Presidência da República. Pertencia ele a uma geração – que infelizmente desapareceu – em que se almejava chegar ao Poder para realizar um trabalho, em favor da população, o fazer pelo prazer de fazer e não, como agora, que se quer chegar ao Poder, por puro interesse pessoal. Foi com essa filosofia de atender ao interesse popular que Lacerda governou a Guanabara: construiu a Adutora do Guandu; construiu 500 quilômetros de esgoto; o Túnel Rebouças; o Emissário Submarino; o Aterro do Flamengo; a Rodoviária Novo Rio; cerca de 200 escolas de ensino fundamental; promoveu a desfavelização do Pasmado; integrou a Barra, que nem telefone tinha, à cidade; além de vários viadutos. Quando olhamos para trás e contemplamos esse magnífico conjunto de realizações, temos que nos perguntar como tudo isso foi possível, malgrado a odiosa perseguição do Poder Central, principalmente do Presidente Castello Branco, que quis seduzi-lo, oferecendo-lhe uma Embaixada em Paris, que ele recusou, porque julgava ter o direito de disputar a Presidência da República. Tinha se preparado, a vida inteira, para isso, e não aceitaria, passivamente, que esse direito lhe fosse usurpado. Castello, apunhalando-o pelas costas, urdiu a candidatura Negrão de Lima, prorrogou seu próprio mandato e passou a tratar Lacerda como inimigo, chegando a articular com a oposição a rejeição das contas do Governador. Missão impossível. Nenhum homem público teve sua vida pessoal e sua administração tão revolvida quanto Lacerda. Não encontraram qualquer irregularidade, qualquer desvio de conduta. Da mesma forma que era um trabalhador compulsivo, entendia que a honestidade, mais que uma virtude, era uma obrigação, principalmente do homem público. Quando, em 1966, Castello deixou claro que não haveria perspectiva de devolver o Governo aos civis, Lacerda, de forma alucinada, engendrou a frente ampla, juntando-se a Juscelino e Jango. Naquela oportunidade, tive a ousadia de escrever-lhe uma carta, acusando-o de destruir sua majestosa história, aliando-se a quem mais combatera, tendo-nos como fiéis escudeiros. Era como se nosso Comandante-em-Chefe passasse para o lado do inimigo. Foi assim que me senti. Não entendi, nem aceitei, apesar da resposta, que ele me enviou, falando em salvar a democracia, em superiores interesses da pátria e etc. Não dava para engolir Juscelino e Jango. Era, “mutatis mutandi” deixar de torcer pelo Botafogo e passar a torcer pelo Flamengo que, diga-se de passagem, era o time dele. Eu era – olha a imodéstia outra vez – “revolucionário” até a raiz do cabelo e também achava prematuro o retorno dos civis ao Poder. Somente vim a ter contato com Lacerda, outra vez, quando, após sua cassação, foi ele preso e consegui visita-lo, graças à interferência de um General, que fora amigo de meu pai. Lacerda, em que pese a inteligência, a conversa fácil, perdera o entusiasmo e, desta vez, falava, para valer, em sair da vida pública e fazer o que nunca pudera, isto é, dedicar-se à família. Após esse episódio, não mais o vi, até o lançamento de seus “Discursos Parlamentares”. Noite de autógrafo em sua “Nova Fronteira”, editora que fundara com seus filhos, Sérgio e Sebastião. Quando cheguei à mesa, ele se levantou e me deu um forte abraço. No livro, apôs uma dedicatória entusiasmada, como ele: “Ao jovem causídico, transfiro meu entusiasmo pelo Brasil.” Eu, já morando no Rio, de vez em quando ia visita-lo na Editora, sempre ao final da tarde. Falávamos exclusivamente em literatura, já que ele proibia que se falasse em política, se bem que, de forma irônica, criticava-me por “servir à ditadura de Médici e Geisel”.

Era um sábado chuvoso, sem qualquer perspectiva de praia. Sobrava esperar pela tarde e ir torcer pelo Botafogo. Toca o telefone, era o Almirante Meziano, meu companheiro de Ministério da Fazenda e Lacerdista empedernido, como eu. “Desculpe ligar, mas o Lacerda morreu, está sendo velado no São João Batista, e o enterro será às cinco da tarde.” Atirei-me ao sofá, entre estupefato e absurdamente triste, porque nem mesmo sabia que ele estava doente. Troquei de roupa e lá fui para a Rua Real Grandeza. O velório cheio, mas não tanto quanto ele merecia. A Revolução e os covardes de sempre temiam o Lacerda, mesmo morto. Fiquei até umas três horas da tarde e corri para o Maracanã. O Botafogo perdeu e eu aproveitei para chorar duas grandes paixões de minha vida.a

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