É sempre oportuno lembrar-nos daqueles que, ao
longo de nossas vidas, deixaram em nós, a marca de suas influências. É a
maneira de mantê-los vivos, quase que conversando conosco, oferecendo-nos o
doce gosto de suas personalidades marcantes. Porisso, falar sobre Carlos
Lacerda, no mês em que se comemora o 36º ano de seu falecimento e minha fugaz
convivência com ele é a oportunidade para reviver momentos importantes e inesquecíveis
em minha vida.
Carlos Lacerda foi, e talvez continue sendo, a
maior influência ideológica que minha juventude absorveu e que iria marcar,
para sempre, minhas convicções políticas. A memória mais remota remete-me lá
pelos 12 anos de idade, ouvidos colados à Rádio Mairinque Veiga, Lacerda a
desancar Juscelino e sua maior megalomania, chamada Brasília. O tempo provou
que Lacerda estava certo: Brasília, nem de longe, cumpriu seu objetivo, que
seria a interiorização do progresso. O jornalista de “A Folha”, Fernando
Rodrigues, em magnífico artigo, quando do último aniversário daquela cidade,
demonstrou o retumbante fracasso social e econômico em que ela se tornou, por
nada ter acrescentado à região. Além do mais, Brasília “isolou” o poder das
injunções populares, possibilitando que grandes falcatruas fossem e continuem a
serem perpetradas. Lacerda tinha essa capacidade de premonição, apanágio apenas
dos gênios. Entretanto, só vim a conhecer Lacerda, pessoalmente, em 1963. Ele
acabara de ser indicado candidato à Presidência da República, pela UDN, no
pleito, que se realizaria em 1965 e já percorria o País em pré-campanha. Foi
ele fazer uma palestra na Faculdade de Direito da PUC-SP, onde eu estudava. Lá,
tínhamos um partido – o “PIU – Partido Idealista Universitário” – que nós, seus
filiados, tínhamos a risível pretensão de ser a “UDN acadêmica”. Batíamos de
frente com a “JUC – Juventude Universitária Católica”, cujo mentor era o Padre
Enzo, Diretor da Faculdade de Filosofia da mesma Universidade, que nós,
“udenistas”, execrávamos, por considera-lo “comunista de batina”. Apesar de
todas as manifestações contrárias, Lacerda foi fazer sua palestra e eu, que era
o orador do partido, fui escalado para saudá-lo. Fiquei uma semana escrevendo e
ensaiando meu discurso e, na hora, suava e tremia, tal o nervosismo. Acabada a
palestra, Lacerda, sempre atencioso e gentil, abraçou-me e me convidou para
conhecer algumas obras importantes, que estava realizando na então Guanabara,
da qual era Governador. A falta d’água era problema crônico naquela cidade.
Havia, até, uma música de carnaval dos anos 50, cujo refrão dizia: “Rio de Janeiro, cidade que nos seduz, de dia
falta água, de noite falta luz...” Pois Lacerda, mesmo com o boicote
financeiro do Poder Central (primeiro Jango depois o próprio Castello Branco)
estava construindo a “Adutora do Guandu”, que iria resolver, definitivamente, o
problema de falta d’água na cidade. Outra obra importante era o “Túnel
Rebouças”, que ligaria a zona norte à zona sul, em poucos minutos. Até
então, o único elo entre as duas regiões era a Avenida Brasil, o que, além de
alongar a distância, provocava, já naquela época, enormes engarrafamentos. A
“esquerda festiva” era contra o túnel porque – alegavam – infestaria de
“suburbanos” as praias do Leblon e de Ipanema. Era uma época incrivelmente
contraditória: a esquerda, que suspirava e revirava os olhos por Cuba, era tremendamente
elitista e homens, realizadores de obras populares, como Lacerda, eram tidos
como reacionários. Mas o certo é que, um dia, recebi um telefonema em casa, da secretária
do Lacerda, cujo nome não me recordo, formalizando o convite para a tal visita.
No dia e hora marcados, apresentei-me no Palácio Guanabara e com mais outras
mais pessoas percorremos inúmeras obras, inclusive a “Vila Kennedy” para onde
estavam sendo transferidas as pessoas, retiradas da “Favela do Pasmado”. Ao
invés de casas improvisadas com tapume, Lacerda mandara construir moradias
descentes, com água, luz e esgoto, o que era um luxo, naquela época. A
“Rodoviária Novo Rio” foi considerada pela oposição rancorosa, obra faraônica,
pelo seu tamanho. Menos de 20 anos após sua inauguração, já se mostrava
pequena. Eu e os outros visitantes, ficamos hospedados no “Hotel Novo Mundo”,
ali na Praia do Flamengo, onde estava sendo construída a maior obra urbanística
do mundo, o aterro do mesmo nome e que é um dos mais belos cartões postais do
Rio. À noite, depois da visita, Lacerda nos ofereceu um jantar, quando nos
apresentou uma extensa relação de suas obras, o que nos deixou a todos
simplesmente maravilhados. Incrível a capacidade de trabalho daquele homem que
ainda encontrava tempo, madrugada adentro, para dar “incertas” em hospitais e
delegacias, a fim de constatar se tudo estava funcionando a contento. De volta
a São Paulo, e como sempre tive mania de escrever, mandei-lhe algumas cartas,
que ele jamais deixou sem resposta, chamando-me “meu jovem causídico”. Mesmo
sabendo, é claro, que as respostas vinham de algum “ghost writer”, era sempre
uma deferência, que me encantava. Voltei a me encontrar com Lacerda, no dia 31
de março de 1964, que, se não me falhe a memória, coincidiu ser um domingo. Naquela
época, eu, habitualmente, passava o fim de semana no Rio. Ia de carona com meu
cunhado ou algum amigo dele, todos pilotos da Varig, que tinha acabado de
comprar a “Real Aerovias”. Saía de São Paulo em um dos voos noturnos da 6ª
feira e voltava do Rio à noite do domingo. Ficava hospedado na casa de minha
irmã, que morava na Rua Paissandu, bem perto do Palácio Guanabara. Meu roteiro
era, de dia, praia e, à noite, o “Beco das Garrafas”, então o templo da bossa
nova. Passava todo o tempo saboreando uma única cerveja – o dinheiro pouco não
suportava mais do que isso – enquanto via e ouvia Vinicius, Tom, Claudete
Soares, Lucio Alves e outros bambas da MPB. Também frequentava o “Cine
Paissandu”, templo do cinema novo, onde se fazia pose de intelectual e se assistia
a filmes chatíssimos. Pois no dia 31 de março, estoura a Revolução e, pelo
rádio, fico sabendo que o Almirante Aragão dirige-se ao Palácio Guanabara, para
prender Lacerda. Eu, que estava a menos de 500 metros de lá, saí
correndo em direção
ao Palácio , para me juntar a tantos outros que lá estavam
para defender nosso líder. Defender, eu não sabia como, já que nunca atirara
nem mesmo com espingarda de chumbinho. Mas sabia que a história estava
acontecendo e queria participar dela. O Palácio estava protegido por caminhões
de lixo que eram, por assim dizer, a divisão “panzer” do Lacerda. Já dentro do
Palácio, após dar meu nome a um soldado, creio que da Aeronáutica, subi a
escadaria central, que desembocava em um enorme salão, àquela hora apinhado de
gente. A um canto, falando ao telefone e, com a outra mão, empunhando uma
metralhadora, estava Lacerda. Encerrada a ligação, dirigi-me para
cumprimenta-lo e ele, para meu espanto, abraçou-me calorosamente. Lembro-me,
vagamente, de que fui encaminhado ao Coronel Gustavo Borges, então Secretário
de Segurança, que estava distribuindo as armas para defesa do Palácio. Dele
recebi um fuzil que segurei com extremo cuidado, já que, desajeitado como sou,
tinha medo que disparasse. Felizmente o ataque não veio e Lacerda, em inflamado
discurso, saudou a Revolução e convocou uma reunião de seu Secretariado. Voltei
para São Paulo e, à distância, fui assistindo ao esgarçamento das relações de
Lacerda com o Governo Castello Branco. Lacerda tinha um grande projeto, o de
ascender à Presidência da República. Pertencia ele a uma geração – que
infelizmente desapareceu – em que se almejava chegar ao Poder para realizar um
trabalho, em favor da população, o fazer pelo prazer de fazer e não, como
agora, que se quer chegar ao Poder, por puro interesse pessoal. Foi com essa
filosofia de atender ao interesse popular que Lacerda governou a Guanabara:
construiu a Adutora do Guandu; construiu 500 quilômetros de
esgoto; o Túnel Rebouças; o Emissário Submarino; o Aterro do Flamengo; a
Rodoviária Novo Rio; cerca de 200 escolas de ensino fundamental; promoveu a
desfavelização do Pasmado; integrou a Barra, que nem telefone tinha, à cidade;
além de vários viadutos. Quando olhamos para trás e contemplamos esse magnífico
conjunto de realizações, temos que nos perguntar como tudo isso foi possível,
malgrado a odiosa perseguição do Poder Central, principalmente do Presidente
Castello Branco, que quis seduzi-lo, oferecendo-lhe uma Embaixada em Paris, que
ele recusou, porque julgava ter o direito de disputar a Presidência da
República. Tinha se preparado, a vida inteira, para isso, e não aceitaria,
passivamente, que esse direito lhe fosse usurpado. Castello, apunhalando-o
pelas costas, urdiu a candidatura Negrão de Lima, prorrogou seu próprio mandato
e passou a tratar Lacerda como inimigo, chegando a articular com a oposição a
rejeição das contas do Governador. Missão impossível. Nenhum homem público teve
sua vida pessoal e sua administração tão revolvida quanto Lacerda. Não
encontraram qualquer irregularidade, qualquer desvio de conduta. Da mesma forma
que era um trabalhador compulsivo, entendia que a honestidade, mais que uma
virtude, era uma obrigação, principalmente do homem público. Quando, em 1966,
Castello deixou claro que não haveria perspectiva de devolver o Governo aos
civis, Lacerda, de forma alucinada, engendrou a frente ampla, juntando-se a
Juscelino e Jango. Naquela oportunidade, tive a ousadia de escrever-lhe uma
carta, acusando-o de destruir sua majestosa história, aliando-se a quem mais
combatera, tendo-nos como fiéis escudeiros. Era como se nosso
Comandante-em-Chefe passasse para o lado do inimigo. Foi assim que me senti.
Não entendi, nem aceitei, apesar da resposta, que ele me enviou, falando em
salvar a democracia, em superiores interesses da pátria e etc. Não dava para engolir
Juscelino e Jango. Era, “mutatis mutandi” deixar de torcer pelo Botafogo e
passar a torcer pelo Flamengo que, diga-se de passagem, era o time dele. Eu era
– olha a imodéstia outra vez – “revolucionário” até a raiz do cabelo e também
achava prematuro o retorno dos civis ao Poder. Somente vim a ter contato com
Lacerda, outra vez, quando, após sua cassação, foi ele preso e consegui
visita-lo, graças à interferência de um General, que fora amigo de meu pai.
Lacerda, em que pese a inteligência, a conversa fácil, perdera o entusiasmo e,
desta vez, falava, para valer, em sair da vida pública e fazer o que nunca
pudera, isto é, dedicar-se à família. Após esse episódio, não mais o vi, até o
lançamento de seus “Discursos Parlamentares”. Noite de autógrafo em sua “Nova Fronteira ”,
editora que fundara com seus filhos, Sérgio e Sebastião. Quando cheguei à mesa,
ele se levantou e me deu um forte abraço. No livro, apôs uma dedicatória
entusiasmada, como ele: “Ao jovem
causídico, transfiro meu entusiasmo pelo Brasil.” Eu, já morando no Rio, de
vez em quando ia visita-lo na Editora, sempre ao final da tarde. Falávamos
exclusivamente em literatura, já que ele proibia que se falasse em política, se
bem que, de forma irônica, criticava-me por “servir à ditadura de Médici e
Geisel”.
Era um sábado chuvoso, sem qualquer perspectiva de
praia. Sobrava esperar pela tarde e ir torcer pelo Botafogo. Toca o telefone,
era o Almirante Meziano, meu companheiro de Ministério da Fazenda e Lacerdista
empedernido, como eu. “Desculpe ligar,
mas o Lacerda morreu, está sendo velado no São João Batista, e o enterro será
às cinco da tarde.” Atirei-me ao sofá, entre estupefato e absurdamente
triste, porque nem mesmo sabia que ele estava doente. Troquei de roupa e lá fui
para a Rua Real Grandeza. O velório cheio, mas não tanto quanto ele merecia. A
Revolução e os covardes de sempre temiam o Lacerda, mesmo morto. Fiquei até
umas três horas da tarde e corri para o Maracanã. O Botafogo perdeu e eu
aproveitei para chorar duas grandes paixões de minha vida.a
Nenhum comentário:
Postar um comentário