Não foi por causa da chuva miúda, a deixar mais cinzenta
aquela tarde de inverno, que fez Luiz Claudio entrar na Catedral da Sé. Apenas
se recordava de se sentir particularmente angustiado, sem causa definida.
Acabara de completar 60 anos e sua vida seguia sem maiores tropeços. Tinha
consciência que seu tempo ficara para trás, irremediavelmente para trás. O que
fizera e conquistara estava concluído. Os erros, as frustrações, melhor
colocá-las no “baú do tempo perdido”,
como dizia o Guilherme ou no ”arquivo
morto”, para repetir Sonia. Não que pensasse em se aposentar, vestir,
pijama e reclamar dos dias atuais, dos costumes atuais e, principalmente, dos
jovens atuais. Se não era homem deste tempo, também não se considerava um
dinossauro. Até porque, como não se libertara, financeiramente, tinha que
continuar na luta. Levava vida modesta – carro modesto, casa modesta, hábitos
modestos. Nunca foi um acumulador e, quando chegou a ser rico – lá pelos anos
80 – levou vida de milionário: viajou,
por onde quis, frequentando os melhores lugares da cidade e do mundo. Sua
mulher nutria um quase desprezo pelo dinheiro: se tinham, ajudava-o a gastar.
Se não tinham, virava-se, sem reclamar, com o desprendimento de sempre. Enfim,
não tinha nenhum motivo especial para, naquela tarde, sentia o peito apertado a
ponto de, não mais que de repente, entrar na Catedral. Nunca tinha entrado ali
e achou-a despojada demais para seu gosto. Lembrou-se da Igreja de sua pequena
cidade do interior, com seus vitrais multicoloridos, suas imagens de santos
entorno e um enorme Cristo crucificado sobre o altar-mor. Ao contrário de “sua igreja”, que ficava no alto do morro
– o que lhe permitia ser vista de qualquer ponto da cidade – a Catedral da Sé
situa-se no centro velho da cidade e está debruçada sobre uma praça que evoca o
“pátio dos milagres”, descrito por
Vitor Hugo, tal a quantidade de mendigos, vagabundos, além do nauseabundo
cheiro de urina, que, inclusive, invade as escadarias do templo. Vendedores de
ervas medicinais, curas para todos os males, vendedores de identidades falsas e
pregadores, de todas as seitas, a anunciarem a proximidade do fim do mundo. A
Catedral estava praticamente vazia, naquele final de tarde. Luiz Claudio
sentou-se no primeiro banco e conteve o ímpeto de se ajoelhar e fazer uma
oração. Seria hipócrita, ele, afastado da igreja e da religião desde sua
adolescência. Fora batizado, fizera a primeira comunhão e ir, aos domingos, à “missa das dez”, mais do que obrigação,
constituía programa matinal. Era a missa da “elite” da cidade, ao contrário da missa das 8, demorada pelo
excesso de comunhão. Na missa das 10 não havia comunhão e nunca soube o porquê,
já que, conforme o “catecismo da doutrina
cristã”, essa era uma das partes essenciais da missa. Depois que viera
morar em São Paulo, lá pelos seus 16 anos, nunca mais fora a missa e somente ia
à igreja, em batizados, casamentos e missas de sétimo dia. Não que tivesse se
tornado ateu. Acreditava em Deus, mas tinha seu modo particular de se
relacionar com Ele, invocando-o, nos momentos de dificuldade. Respeitosamente, não comia, carne às sextas-feiras santas e em
finados, chegava a rezar pelos seus mortos. E aí terminava sua prática
religiosa. Por isso se surpreendeu, sentado naquele banco da Catedral, buscando
resposta para pergunta desconhecida.
Como Fernando Pessoa, sentiu-se sentado ao pé de uma parede sem porta,
esperando que a porta ausente se abrisse e mostrasse a solução para aquela
angústia, sem causa determinada.
- “Você não quer dar o
braço a torcer, Luiz Claudio, mas fazer 60 anos derrubou você, que vive
resmungando pelos cantos se queixando de tudo e de todos”.
E o pior é que Maria Clara tinha razão: cada dia ele se
tornava mais recluso e seu tempo ocioso gastava-o em leituras, quase sempre
densas. Já nem mais era convidado para reuniões sociais, tantas vezes a elas
faltara, sem nem mesmo se preocupar em dar uma desculpa qualquer. Carlos, seu
cliente de mais de 20 anos, dono da maior cadeia de farmácias da cidade, ficava
estremecido com ele, pela ausência na festa de bodas de pratas.
- “Você tem idéia, Luiz
Claudio, quantos advogados gostariam de me ter como cliente? Pago bem e quase
não tenho problemas. Não é que você tenha feito falta, mas era uma recepção de
lugar marcado e, como você não avisou que não viria, a mesa, logo a mesa do
Desembargador Moreira, que é um nariz empinado, ficou com um buraco e eu é que tive que arranjar uma desculpa para
você”.
- “olha, Carlos, gosto
de você como pessoa e como cliente. Tudo bem, furei com você, mas isto não lhe
dá o direito de me ameaçar, trocando de
advogado. Se quiser, fique a vontade, há centenas de escritórios em condições
de lhe atender até melhor do que eu.”
O estremecimento entre ambos durou mais de um mês, até que
Carlos, telefonou, convidando-o para o almoço. Luiz Claudio imaginou ser um “almoço de despedida”. Carlos, sempre
alegre, contou piadas, falou dos netos e, já no café, adquiriu um ar grave: “Luiz Claudio, gosto de você, gosto do seu
trabalho. Conhecemo-nos já lá vão 20 anos, tenho liberdade para perguntar: está
acontecendo alguma coisa com você, saúde, grana? Você está estranho, cara,
calado, com ar amargurado. Sei que você fez 60 anos, a Maria Clara ia fazer uma
festa, reunir amigos, clientes, colegas de faculdade e você não quis. Além disso você deixou seus
filhos e netos te esperando e só chegou em casa às 10 da noite, vindo não sei
de onde. Maria Clara ligou, chorando, para minha mulher, perguntando se você
estava comigo. Com certeza, ela está achando que você tem ou estava com outra”.
- “Carlos, não é nada
disso e eu já me expliquei com Maria Clara. Tinha um recurso, com prazo acabando e fiquei
trabalhando. A esta altura da vida, não mais faz sentido comemorar aniversário”.
- “Sei lá, Luiz
Claudio, você anda mais estranho que o habitual. Talvez seja o caso de fazer
uma terapia. Se quiser tenho uma psicóloga ótima, Dra. Mariana Cintra, posso
lhe indicar”.
- “Obrigado, Carlos,
mas não tenho nada. Além do mais, não acredito na psicologia, pelo menos como
ciência. É para especulação empírica. Coisa pra milionário distraído, como você”.
Sentado, naquele banco da Catedral, olhando para o vazio,
Luiz Claudio repassava os últimos acontecimentos de sua vida, inclusive aquela
conversa com o Carlos. Mentira, ao falar de seu aniversário. Na verdade, se
deixara ficar no escritório até tarde, tempo para que os não convidados fossem
embora. Simplesmente não queria comemorar coisa alguma. Porque, não sabia.
Sabia que queria ficar sozinho, sem “parabéns
pra você” e netos correndo pela sala. Sentia um aperto no peito, que não
doía, mas que chegava, acumulado de tristeza. E talvez fosse a resposta para
tal desconforto que fora buscar na Catedral. De repente, seus olhos foram,
imperceptivelmente, direcionados para pequeno impresso, esquecido sobre o
banco, onde estava retratado um santo, do qual nunca ouvira falar. Por puro
impulso, pegou o impresso e leu e releu a oração, contida no verso. Mais do que
simples oração, era verdadeiro pedido de socorro e proteção, principalmente
contra as mazelas da alma. Foi como se forte rajada de paz tivesse atingido
Luiz Claudio, que teve a certeza ser o convite de Deus para seu convívio.
Era outro homem, quando deixou a Catedral.