Segunda feira chuvosa não seria pretexto para que Rodolfo,
meu amado pastor alemão, me receba com pouco entusiasmo. Nada de pulos no
portão, exigindo-me que lhe beije o focinho, antes de abrir-lo. Ao contrário,
coloca-se à distância dele, eu o abro e ele se limita a acompanhar-me escada acima, enquanto eu, em
gesto mecânico, afago-lhe o dorso. Ele não resiste:- “vejo, até pelo seu andar, que você teve um dia difícil. Quebre seu hábito de não beber durante a semana,
faça um uísque duplo e se concentre em
alguma coisa boa, por exemplo, a excelente colocação do Botafogo no
brasileirão”. Rodolfo, com a idade e
a estreita convivência, vai me conhecendo melhor do que qualquer pessoa,
parentes e clientes, a quem prefiro fingir que as águas correm límpidas e
serenas. Persigo um lema: se você não pode resolver meu problema, não tenho
direito de atormentá-lo, com ele. Mas, com Rodolfo, vivo quebrando regras.
Desisto de entrar em casa, desço a escada, tiro o paletó e me sento debaixo
dela, na cadeira de vime. Rodolfo, surpreso, mas quieto, acomoda-se ao meu
lado. Nara se aproxima, esfrega a cabeça em minhas pernas, eu massageio suas
costas e ela deita mais distante. Como de hábito, ouvirá, mas não participará
da conversa que pressentiu que iria iniciar, entre mim e Rodolfo. Eu dei a
partida: - “Rodolfo, você sabe o que é abuso de autoridade?” - “Não
tenho a menor idéia, respondeu ele, porque você, mesmo quando está de mau
humor, como hoje, nos trata com carinho e atenção? Até o Clóvis, aquele chato,
que late sem causa, você é incapaz de dar uns safanões nele!” – “Pronto, mesmo sem querer, você se aproxima
do conceito. Tomemos as duas palavras “abuso” e “autoridade”. Esta identifica
alguém que, apenas por razões objetivas, tem o comando de uma situação. “Abuso”
vem a ser o uso indevido dessa “autoridade”. E, na extremidade oposta situa-se
a vítima desse abuso, pessoa que, por covardia ou conveniência, não se
contrapõe ao abuso. Por exemplo, o empregador, que humilha o empregado e este,
para não colocar em risco seu emprego, não reage. Todavia, desta “não reação”
surgirá ressentimento que, mais cedo ou mais tarde, poderá explodir. Você
entendeu?” - “Claro, como água, sua
explicação, mas não entendi qual a relação com este seu estado de espírito, tão
pra baixo.” –“é que hoje fui vítima
de ato de abuso de autoridade, contra o qual não pude reagir para não
prejudicar o cliente. Nós advogados, estamos sempre reivindicando alguma coisa
e sabemos que ganhar ou perder faz parte do jogo. Apesar de, na teoria, afirmar-se
que juiz e advogado estão no mesmo patamar, na prática a teoria é outra, porque
a decisão fica na caneta do juiz. Tenho tido o privilégio de, ao longo do
tempo, ter convivido com Magistrados, de alto saber jurídico, mas que jamais
colocaram “salto alto”, para conversarem com advogados. Volto, em tempos
remotos, minha memória para o então Ministro do Supremo Tribunal Federal,
Moreira Alves, uma das mais fulgurantes
culturas jurídicas do Brasil, que gastou seu tempo, ouvindo-me, eu, ainda
imberbe profissional. Sepúlveda Pertence era outro exemplo de cordialidade, no
atendimento a advogados. Em nosso Tribunal, são incontáveis os exemplos de
desembargadores que até exageram no bem tratar o advogado, como pude constatar,
mais recentemente, ao ser recebido pelos desembargadores Fernando Torres Garcia,
Hermann Herschander, Marcia Barone e Maria de Lourdes Rachid. Falar do Chico
Bevilacqua, do Aluísio de Toledo Cesar,
(estes prematuramente aposentados por uma lei burra) e do Mario Antonio da
Silveira, amigo de quase uma vida inteira, chega a ser covardia. E olha que
nunca lhes pedi qualquer privilégio – nosso relacionamento pressupõe respeito –
e deles já recebi votos desfavoráveis a minhas pretensões”. Rodolfo, com
indisfarçável impaciência, resolve me interromper: “você está quase fazendo uma auto-biografia e eu ainda não entendi o que
tem tudo isto, que você disse, com sua irritação de hoje”. Resolvi encurtar
a história, até porque ainda nem mesmo entrara em casa: “pois agora, Rodolfo, vou ao caso de abuso de autoridade, de que estou sendo
vítima, sem poder reagir: no dia 22 de outubro, fui procurado por meu cliente,
que teve todo seu dinheiro – cerca de 500 mil reais – penhorado, em ação
judicial. No dia 27 do mesmo mês de outubro, fui despachar com a desembargadora
Ana Liarte de refinada educação que, sensível aos argumentos técnicos, por mim
apresentados, determinou o imediato desbloqueio. Acontece que, quem
operacionaliza o desbloqueio é o juiz da vara, por onde corre a ação, no caso,
o juiz da 7ª Vara da Fazenda Pública da Capital. A guia para levantamento do
dinheiro repousa, na mesa dele, aguardando, apenas, que ele a assine. Hoje, 2ª
feira, pela terceira vez, fui falar com ele, solicitando a malfadada
assinatura. Ele, irritadiço, afirmou que se eu continuasse a pressioná-lo, aí é que ele não
assinaria mesmo. E contou-me, com o orgulho dos idiotas, das lágrimas,
derramadas por colega, em situação análoga e para quem ele, também, do alto de
sua importância, dissera “não”. Quis eu lhe dizer algumas palavras, misturando
conceitos de direito, justiça e bom senso. Pensei em fazer-lhe ver que efêmera
era a cadeira que sustentava sua pretensão de ser o senhor das coisas e das
pessoas. Desisti, primeiro, porque seria ato quixotesco que reverteria contra meu cliente; segundo,
porque os pretensiosos só enxergam seus próprios umbigos e, terceiro, porque,
seguramente, tal deturpação de comportamento, deveria ter origem psicológica,
fora de minha compreensão. Engoli seco minha frustração, as palavras não ditas,
saí do fórum, atravessei a rua, entrei na Igreja para agradecer a Deus por
minha estrada estar chegando ao fim. Restam poucos tiranos a enfrentar”
Calmamente, como convém aos que se amam, Rodolfo apoiou seu focinho em minhas
pernas, olhando-me nos olhos e entendendo minha tristeza de 2ª feira.
P.S.: Os colegas que quiserem se desrecalcar das agruras
sofridas, em mãos de juízes despóticos, sugiro a leitura do livro “O ADVOGADO
REBELDE” de John Grisham. Leitura fácil,
mas absorvente.