PORQUE É SEXTA FEIRA DA PAIXÃO
A Sexta-Feira Santa, além dos
aspectos litúrgicos, remete-me à infância, em minha cidade do interior. Era, para
todos, independentemente da crença religiosa, dia absolutamente sagrado: as
rádios (ainda não havia televisão) apenas tocavam músicas sacras, ou, no
máximo, clássicas. Quase não se falava e se se o fazia, era em voz baixa, em
estado de total recolhimento. Bares, restaurantes, padarias, absolutamente nada
funcionava e, para se prevenir as pessoas tinham de se abastecer de véspera. Às
seis da tarde, toda a população se reunia em frente à Igreja Matriz para
assistirem à encenação da “Paixão de Cristo”, interagida, com muita emoção. Até
as “moças lá de cima” marcavam presença e, naquele dia sagrado, recusavam-se a “prestar
seus serviços” aos mais hereges. Quando me mudei para São Paulo, no início dos
longínquos anos 60, essa tradição ainda perdurava, se bem que em escala muito
menor. Poucos estabelecimentos comerciais funcionavam e as farmácias, apenas as
de plantão ficavam abertas. Na televisão, ainda incipiente, predominavam os
temas bíblicos, com destaque para os sofrimentos de Cristo. O tempo passou e a
religiosidade transformou-se em quase gueto. A maioria, sem saber distinguir
dia santo de feriado, arruma suas tralhas e encara horas de viagem até o
litoral ou o campo. E quanto a Cristo e seu sacrifício? Deixam-no na cruz, quase
como figura de ficção. Afinal, o que fez ele? Certa feita, alguém, do alto de
sua imbecilidade e de seus múltiplos defeitos, perguntou: afinal, se Cristo é
chamado “Salvador”, de que ele nos salvou? Eu, cá de mim, na minha ignorância e
mediocridade, perpetuando-me em meus erros, preciso ser salvo, todos os dias,
pelos ressentimentos, que sou incapaz de superar; pelos preconceitos, que sou
incapaz de sobrepujar; pelo egoísmo, que me faz indiferente ao sofrimento do próximo;
por cultivar mais o desamor do que o amor; por ter a definitiva certeza que
nada acrescento a quem está à minha volta. Por tudo isto, retorno à minha infância,
na sexta-feira santa e tento refletir no sofrimento de Cristo e no mistério
indecifrável do calvário e peço a Cristo, sendo eu o maior dos pecadores, que
tenha misericórdia de mim e me torne digno do Seu sacrifício.
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