sexta-feira, 15 de junho de 2018

Melhor falar que calar


Deu-se, então, que foi morar em nossa rua aquela mulher, de estranho nome, se chamava: Umbertina. Acabara de casar o filho e enterrar o marido, fatos que pareciam lhe trazer grande alegria. Vivia só, mas não em solidão, pois a todos se prendia, seja para “um dedo de prosa”, seja para visita inesperada, a se arrastar até que o dono da casa cochilasse no sofá, ela a falar e ele ou ela a escutar. Comentava tudo que se passava a sua volta e, o que não passava, ela inventava, pois a imaginação foi colocada dentro da cabeça pra isto mesmo. No cinema, preferia filmes de cobois, -  ou cowboys, como dizem os mais sabidos -, a quem, quase aos gritos, prevenia dos perigos, desatenta aos reclamos dos vizinhos de poltrona. Voltava para casa aliviada, certa que a vitória final deveu-se a ela, sempre alerta em defesa dos justos, que índio é bicho traiçoeiro, só ataca pelas costas. Ainda mais índio americano, sempre parrudo, com quem sonhava, à noite, esfregando sua vergonha, na  secura desde que o traste do marido morrera, ele que não prestava para nada, beberrão, vagabundo, mas que era danado de bom nas coisas de sem-vergonhice. Uma vez por ano, dona Umbertina sumia por uns quinze dias. Contava que entrava numa excursão de terceira idade e batia perna pelas estradas. Quando voltava, vinha cheia de histórias e falava, até ficar sem voz e o ouvinte sem ouvido. Quantos anos davam para Umbertina? Talvez sessenta, talvez quase setenta, mas, pela bunda ainda empinada e pelos seios fartos, despertava interesses vadios, principalmente do jornaleiro, onde comprava revistas de fofocas noveleiras. Todavia, para respeitar a verdade, é preciso que se diga que nunca esteve envolvida em safadeza. Falava da vida de todo mundo, menos da dela, que devia ser segredos sepultados. Um dia, foi a minha casa, olhos inchados de quem chorara muito. Arrastou minha tia, que morava conosco, e foi para o quarto. Inútil escutar pela porta, que elas falavam baixinho, aliás, só ela falava e, de vez em quando, desandava a soluçar e só se ouvia mesmo o soluço e o gemido doído de alguma coisa que doía muito. Saiu de mansinho, mal chegava ao portão e nós cercando a tia para saber porque dona Umbertina, sempre tão cheia de risada e falação, chorava como, em final de novela, quando  a preterida vê seu amor casar com sua melhor amiga. A tia, depois de muito não falo, preparado  só para fazer suspense, como nos filmes de terror, acabou contando que o médico descobriu dona Umbertina ser portadora de câncer nas cordas vocais e que, em pouco tempo, ela ficaria muda. Ninguém podia imaginar dona Umbertina mergulhada em definitivo silêncio. Passamos a olhá-la com compaixão, ela cada vez mais abatida, não aparecia mais para a novela das oito, trancada em casa com sua infelicidade. Aí sucedeu que passou o fim-de-semana sem ninguém ver dona Umbertina, nem à missa foi. Esqueci de contar que ela possuía um cachorro, vira-lata, chamado Sultão que, logo no amanhecer da segunda feira, começou a latir, latido que se tornou uivo,  que chamou nossa atenção e dos outros vizinhos. Alguém pulou o muro da casa de dona Umbertina e, da porta da frente, saía cheiro nauseabundo. Logo, várias pessoas se juntaram, dando palpites sobre o que fazer, até que seu Germano, com a autoridade de sargento aposentado, deu a decisão:- “vou entrar pelo fundos e não quero  ninguém atrás de mim”. Como autoridade é autoridade, todos obedeceram, apesar dos resmungos de dona Matilde, que era a melhor amiga de Umbertina, que tinha prioridade, que Germano mal falava com a dita cuja. Passados poucos minutos, o ilustre representante das forças armadas saiu pela porta da frente. Estava lívido, com um pedaço de papel na mão. Encontrara dona Umbertina morta, um copo de formicida ao lado. No pedaço de papel, deixara sua despedida: “sem poder falar, melhor morrer.”

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Nosso idioma, ontem e hoje


De tempos longevos, vem-me à memória o purismo do professor Soares Amora, a pretender afastar de nosso idioma todas as palavras usurpadas de idiomas estrangeiros. Luta, bravamente, contra  os galicismos e anglicismos, luta perdida, pois o idioma, qualquer idioma, em sua evolução dinâmica, sofre a influência de culturas mais sedimentadas. O Português, que se fala e se escreve por aqui, até o final da segunda grande guerra, assimilou palavras e expressões francesas, até porque Paris era o destino dos fazendeiros de café que, até então, dominavam a economia brasileira. Com o passar do tempo, palavras como “chauffer”, “abât-jour” foram “traduzidas” e incorporadas a nosso vernáculo, como chofer e abajur. Após 1945, principalmente pelo massacre a que nos impôs Hollywood, os Estados Unidos passaram a ser nossa Meca cultural e as novas gerações, na música, no vestir e até no comportamento passaram a gravitar em torno daquele País. Hoje, qualquer garoto de 10 anos, pelo menos, arranha o Inglês, até porque, se não o fizer, fica fora do mundo dos “games”, o que é fatal. A diferença é que nem se dão ao trabalho de traduzir palavras cibernéticas.  Usam-nas, no original e vida que segue... menos para analfabetos, como eu. Conto, sem pudor, que certa feita, uma de minhas noras enviou-me mensagem, convidando-me a participar de seu “linkedin”. Não respondi, porque não tinha a menor ideia do significado daquela palavra, com jeito de  mineirês”, nós que falamos “docim”, “brinquedim” e até tempos  cidade chamada “Betim”. Continuo desconhecendo o sentido desse palavreado, que faz com que chame computador de Vossa Excelência. Não navego na internet, ando de canoa, o que já está pra lá de bom.
Considero absolutamente normal estas incorporações a nosso idioma, de palavras e expressões estrangeiras, a ponto de a geração, que nasceu com a informática, ter criado vocabulário próprio, repleto de catacreses, palavra que emprego só para me exibir. O que,  realmente, me provoca arrepios é o uso de expressões que, de tempo em tempo, são usadas até por gente metida a intelectual. Houve uma época em que a moda  era empregar a expressão “via de regra”, que abria e fechava qualquer diálogo. Caiu em desuso ( o que foi oportuno, porque, ao pé da letra, significa o trajeto do fluxo menstrual), sendo substituída por outra, mais tenebrosa:  a nível de” que, rigorosamente, nada significa a não ser que quem a usa é pernóstico e ignorante. De uns tempos prá cá, está todo mundo “colocando opinião”, ao invés de, simplesmente opinar. Ontem, mesmo, no jornal da “Globonews”, o  jornalista Camarote ‘colocou”, à vontade, sobre o encontro de Trump com o norte-coreano. O saudoso Otto Lara Rezende, em uma de suas crônicas, chamava de bestialógicas essas expressões, sem conexão com a realidade semântica e que, de repente, incorporam-se ao linguajar cotidiano.
Quando tiver um “tempim”, vou pesquisar para descobrir como essas cretinices entraram no vocabulário, contaminando, inclusive, ilustres jornalistas, como o acima citado.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Pequena e boa história


Antigamente, na  Borgonha, os lobos viviam às soltas. Rondavam pelas florestas e, em tempo de escassez, erravam pelas ruas de cidades e aldeias. Consta que, no século X, suas alcateias eram tão grandes e selvagens que forçaram os duques da Borgonha a trocar Auxerre, sua capital fustigada pelo vento, pelo clima mais resguardado de Dijon. Era a maldição dos lobos, declararam os duques; o infortúnio se emboscava onde quer que as feras fossem encontradas.
Hoje em dia, muitos zombam dessas histórias, mas os velhos juram que são verdadeiras. Monsieur Le Brun, que viveu em Auxerre pouco antes da Segunda Guerra Mundial, contou: “Os lobos  costumavam nos importunar um bocado. Sempre foi assim nas regiões de vinicultura. Como os animais selvagens aprendem a comer tudo que encontram, tínhamos de vigiar as uvas.”
Isso era especialmente verdadeiro em tempos de escassez. Ao longo dos séculos, as regiões pedregosas em que a uva é cultivada na França, cujo solo é impróprio para outros tipos de cultura, foram com frequência assoladas pela fome e tornaram-se uma atração irresistível para lobos esfaimados que sobreviviam comendo uvas. Mas as pessoas notavam algo de estranho. Segundo Monsieur Le Brun, as uvas tinham um efeito euforizante sobre os lobos. “suspeito que o estômago do lobo é formado de tal modo que a fermentação  dos sucos da fruta tem lugar rapidamente depois que o animal come as uvas. Seja como for, o resultado é frequentemente a embriaguez.”
Cenas como essas são raramente vistas hoje, já qu e a maior parte dos lobos foi exterminada, mas Monsieur Le Brun conta que se lembra de ter visto uma alcateia bêbada correndo junto à sua casa. “Entraram exatamente por esta rua”, disse ele, apontando a ruela calçada de pedras que corria pelo meio da cidade. “Poucos dos que viram a cena irão esquecê-la.”
“Os lobos estavam todos embriagados. Era isso, para começar, que os fazia entrar na cidade, e era também o que salvava os moradores depois que entravam. Estavam bêbados demais para lembrar que eram lobos.”
Os moradores, encolhidos em suas cabanas, espreitavam aparvalhados os animais que corriam pelas ruas, uivando e babando, antes de cair em letargia.
“Eles simplesmente se deitavam na rua, estuporados de bêbados”, disse Monsieur Le Brun.
Obs: extraído do Livro “Vinho & Guerra” de “Don e Petie Klasdtrup